(Este meu texto saiu originalmente no site ImpulsoHQ de Renato Lebeau em 3 partes em nov. 2009. E como o site foi descontinuado e albuns de Mathieu foram lançados no Brasil, resgato aqui meu texto duma vez):
Neste último 6º. FIQ – Festival Internacional de
Quadrinhos, que aconteceu em Belo Horizonte no mês de outubro de 2009, havia um
autor francês que acabou não vindo ao evento. O que foi uma pena, pois o
trabalho de Marc-Antoiune Mathieu, cujo nome apareceu na primeira lista desse
último FIQ, é um dos melhores que já vi no cenário da BD (HQ, como são
conhecidas na França) contemporânea, em matéria de criatividade, em meio a
tanta falta de originalidade generalizada pelo mundo. Além disso, seus
trabalhos trazem em pauta uma crítica à burocratização, em específico na obra
“Le Processus” (com o personagem principal Julius
Corentin Acquefacques, prisioneiro dos sonhos).
Pois senão, vejamos o que este, um de seus vários álbuns, tem a nos dizer.
“Le Processus[1]” (fig. 1) é uma obra em narrativa seqüencial dividida em 5 partes, mais um prólogo, dividido da seguinte maneira:
0) Prólogo;
1) A intrusão fatal;
2) A usina dos sonhos;
3) O pesadelo do teto;
4) Em busca do sonho perdido;
5) O infra-sonho ou a ultra-realidade[2]
O autor Mathieu tem uma série de vários álbuns,
sendo que este é o quinto deles. Ele tece, em cada uma de suas obras uma
história fechada, utilizando-se muito de metalinguagem e sobreposições dos
tempos presente-passado e futuro (relatividades). Num dos outros álbuns da série (L´Origin), o personagem em foco,
Julius Acquefacques, se depara com uma biblioteca que possui livros contendo
episódios na forma de HQs das vidas de todas as pessoas. Na pesquisa ele se
depara com o livro que descreve sua vida, e a metalinguagem vem à tona enquanto
ele dialoga com o bibliotecário, ao segurar e ler o livro que traz impresso em
suas páginas a reprodução da mesma página em que o leitor está lendo. A certa
altura, a cena se reproduz em outra página do álbum, como em um dèja-vu. O autor ousa também na
concepção gráfica da HQ, “vazando” um
quadrinho aberto, que sugere a metalinguagem, no momento em que o personagem
aponta para a página anterior, dizendo que o fato já ocorreu. É um trabalho que
conceitualiza as questões do livre-arbítrio e o “maktub” (está escrito) justamente numa obra “escrita”
com textos e imagens na forma de história em quadrinhos. A liberdade de criação
do autor faz com que a HQ seja o único veículo que pode permitir[3]
tal jogo metalinguístico - quase como a pintura “Isto não é um cachimbo” de
Magritte (fig. 2),
e as incursões filosóficas propostas por Foucault.
Neste álbum “Le Processus”,
não ocorre diferente: no primeiro capítulo, Julius Acquefacques, convivendo num
mundo apinhado de gente, “trabalhadores-padrão”, como saídos do livro “O
Processo” de Franz Kafka, e num sistema
altamente racionalizado, como as engrenagens de um relógio, vê seu mundo se
transformar quando acorda no chão de seu quarto, e, antes de sair pela manhã de
seu apartamento-padrão, se depara consigo mesmo novamente de pijama deitado em
sua cama. Ambos Julius “paralelos” dialogam, mas logo um deles (o que ia sair)
toma o veículo de condução: uma bicicleta com um motorista, que é conduzida
entre os prédios por um sistema de cabos nos quais passeiam as bicicletas! (fig. 3 e 3a)
Antes de continuar a narrativa, deve ser lembrado que na página inicial desta HQ, no prólogo, o mecanismo de um relógio que é mostrado apresenta uma variação “ínfima”, que pode ter, como pergunta o texto no 6o. quadrinho, como se verá, uma influência no destino do personagem (fig. 4).
No capitulo 2, em meio ao trânsito
“aéreo” surrealista de bicicletas sobre fios, o motorista vai conduzindo
Jacquesfacques através de diversos recintos e locais, dentre os quais,
ressalta-se na pág. 16, a sala onde se dão as cotações das bolsas de valores da
cidade. Mas nesse caso, as “bolsas” estão em baixa (fig.
5), e são outras diferentemente das que são reconhecidas no mundo
capitalista: aqui elas são a vontade,
cotação (-) 8, lealdade (-) 0,3, sinceridade (-) 6, e por aí vai, numa
crítica contumaz do autor às qualidades humanas, perdidas talvez em meio à
burocratização da vida.
Afinal, Jacquesfacques chega
ao destino: a usina dos sonhos, local que controla o único espaço vital que
subsiste: o sonho. É mais uma crítica ao sistema social que cerceia os passos
inusitados do destino do homem. Nosso personagem, que lá tinha uma consulta
marcada, é confundido com outro, e não consegue se desvencilhar dos médicos que
prontamente o operam (algo relacionado à mente).
Em meio a várias passagens,
surgem elementos espirais: jogos, desenhos etc, como que para demonstrar um
padrão, tal qual o da ciência fractal.
No capítulo seguinte (fig. 6), vemos Jacquesfacques despertar em seu
apartamento, que, encafifado com a ausência do teto, se pendura na parede e
verifica que sua visão se estende até os outros apartamentos, em uma
configuração similar aos quadrados do xadrez, numa perspectiva visual infinita
(ele está num sonho).
Enquanto isso, de volta à
sala onde foi operado, surge o mesmo personagem, mas de pijama, e avisa aos
médicos que era ele que deveria ter sido operado e não seu outro eu, que se
encontra ainda preso à cama.
Estabelecida a explicação,
os médicos mostram por uma escotilha, os sonhos do paciente e dizem que agora é
tarde: eles já o perderam no sonho.
No 4o. capítulo,
enquanto Jacquesfacques caminha por cima dos vãos dos apartamentos, ele vai
passando por quartos em que são demonstradas cenas já passadas na própria HQ (e
talvez cenas “futuras”). Na caminhada ele encontra pessoas que o aconselham a
ter cuidado ao se encontrar com o “vortex”, e também se depara com um serviço
de informações, e um bibliotecário além de uma vasta biblioteca. Travam
diálogo, e o bibliotecário descreve em que posição ele se encontra no setor
(como se estivesse demonstrando o posicionamento de uma estrela em um mapa
celeste abobadado).
De repente, despenca outro
personagem (Jacquesfacques também de pijama) que derruba vários livros. Embora
o outro Jacquesfacques se surpreenda, ele é reprimido pelo bibliotecário, por
causa da bagunça causada (é como se o bibliotecário não tivesse feito distinção
dos dois outros personagens, encarando-os como um só).
Enfim, o que caiu, retorna
para cima, e o outro se despede do bibliotecário e sai, seguindo as indicações
a ele dadas. Mas enquanto anda novamente por sobre os muros divisórios dos
apartamentos, ele começa a ver uma distorção, até que as paredes parecem se
encurvarem como numa espiral: Jacquesfacques acabara de encontar o vórtex (que
sinaliza ser um meio para outro universo paralelo)...
E no quinto capítulo ele é
engolido pela espiral arquitetônica. A página 37, que abre o capítulo, e se
intitula “O infra-sonho ou a ultra-realidade” merece destaque, pois é mais uma
ousadia editorial: o autor concebeu a espiral numa concepção gráfica destacada
da página (é difícil imprimir um tipo de página assim, pois requer facas
especiais nas máquinas industriais gráficas). Assim quando o leitor puxa a
página, a espiral se abre num buraco central, vazando até a folha seguinte do
álbum, onde surge uma imagem diferente: em vez de desenho, o autor se utilizou
de areia e de esculturas do personagem, numa foto impressa. Na mesma espiral,
“correm” os quadrinhos da HQ até sumirem de vista (fig.
7ª, 7b, 7c).
Nas páginas seguintes há uma mescla destas técnicas: foto, escultura e desenhos, mostrando o passeio surreal e metalinguístico do personagem num mundo “alternativo” em que ele também vê as páginas da HQ na qual ele vive, com desenhos acabados ou não, em passagens quadrinhizadas já vividas pelo personagem assombrado. Caminhando perturbado, mas resignado, por fim, nosso herói reconhece, numa das pranchas da HQ do artista, seu quarto, e resolve “descer e entrar” nele, novamente (fig. 8).
Na página 45 surge mais um
capítulo, mas também referenciado como 5o, que se chama “o circuito
se fecha”:
Nesta página, um único e grande quadro mostra Jacquesfacques de costas na cama, despertando. Na página seguinte ele se depara com seu outro eu, e na página 46, repetem-se os 5 últimos quadros da página 8, e a p. 47 se mostra idêntica a p. 9, culminando na página 48 (fig. 9), que seria idêntica à 10ª. página não fosse por sua leitura espiralada até o centro da página, em escala reducional de quadros, como se estivesse repetindo todo o percurso já lido da HQ, aludindo a um destino cíclico (e espiralado?).
Comentários consideráveis:
Nesta HQ, existem as idéias do “eterno retorno”, do déja vù, do conceito da ciência fractal (o pedaço mínimo faz, em junção aos outros, o todo), as questões da psicanálise e dos sonhos, as imbricações quânticas e da lei da relatividade do passado, presente e futuro, e mundos (universos) paralelos, que atualmente são bastante divulgados pelos cientistas contemporâneos como possibilidades muito viáveis...
A
idéia de um alter ego como esse é estranha à primeira vista e pouco
plausível, mas parece inevitável que acabemos por aceitá-la, pois essa idéia tem
sustentação em observações astronômicas.
(...)
Os cientistas têm discutido a existência de pelo menos quatro tipos diferentes de universos paralelos. O ponto-chave não é discutir se o multiverso existe, mas quantos níveis ele possui. (TEGMARK, Max. O jogo de espelho dos Universos Paralelos. In Scientific American Brasil, ano 2, n. 13, junho de 2003, São Paulo: Ediouro, Segmento-Duetto Editorial Ltda.).
Lembrando também que as HQ
são os únicos veículos que permitem ao leitor uma visualização simultânea do
passado, presente e futuro: enquanto seus olhos (as fóveas centrais) miram o
quadro presente, suas visões periféricas fazem a varredura (subliminar) dos
quadros já lidos e daquelas que o serão, de cada página lida.
Ao que parece, o autor
também brinca com este conceito, e o repercute na metalinguagem e na espiral
(principalmente da última página do álbum).
É uma história extremamente
criativa e complexa em sua estrutura (cuja essência remonta também ao filme
Matrix, cuja realidade é relativa), que põem em pauta principalmente as
questões do livre-arbítrio e destino, na qual se critica também a mesmice dos
paradigmas mentais e a perda dos valores humanos.
E para finalizar, o autor
causa um estranhamento ao inserir dois 5os. Capítulos repetidos:
qual o motivo desta “repetição”?
Como eu afirmei, principalmente pela qualidade
estética, gráfica e reflexiva, (pois nos faz pensar as realidades e a consciência) os trabalhos
desse autor francês (fig. 10) merecem urgentemente
ser publicados também no Brasil. Alguma editora se habilita[4]?
Gazy Andraus, (gazyandraus@ufg.br ; http://tesegazy.blogspot.com/ )
doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP; então professor da FIG-UNIMESP, membro do Observatório de HQ da USP e do INTERESPE – Interdisciplinaridade e Espiritualidade na Educação, bem como autor de HQ fantástico-filosóficas. São Vicente, dezembro de 2002 (atualizado em 2009).
Atualmente pós-doutorando pelo PPGACV da FAV-UFG e bolsista do CAPES-PNPD
[1] Julius Corentin
Acquefacques, prisonnier des rêves- Le Processus de Marc-Antoine Mathieu.
Tournai, Belgique: Guy Delcourt Productions, 1993.
[2] E ainda mais uma surpresa.
[3] Veja nos comentários finais deste artigo.
[4] Site para conhecer mais acerca de Marc-Antoine
Mathieu: http://pagesperso-orange.fr/cicla/div/marc-antoine_mathieu.html
. Além disso, veja um álbum diferente “Dieu in personne”, outra obra
interessante de Mathieu em http://www.editions-delcourt.fr/aller_plus_loin/dossiers_bd/interview_de_marc_antoine_mathieu_pour_dieu_en_personne
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